A filharada de d. Zefa e seu Zeca — hábitos e fatos
- Antonio Mário Bastos
- 25 de ago. de 2024
- 6 min de leitura
Durante o período da pandemia, comecei a escrever um pretenso e possível romance, que titulei, provisoriamente, “Sertão que vivi e sonhei”.
Publiquei um, digamos assim, primeiro episódio ou primeiro excerto, na rede social Facebook em 18/08/2020 em meu perfil Tonho Do Paiaia.
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Obedeciam a um ritual invariável: chegavam da escola............
A filharada de d. Zefa e seu Zeca — hábitos e fatos
Eram em oito ao todo. Quatro meninas e quatro meninos. Prole bem dividida, parecendo até sob encomenda ao Divino e plenamente atendida. Num ano nascia um filho homem no outro ano uma filha mulher, todos nasceram de parto normal, assistido pela parteira do lugar, conhecida como mãe Zabé Ôio Doca, e nunca esperados doze meses ou mais entre cada um deles. Houve um caso em que dois filhos nasceram no mesmo ano.
A filharada obedecia a um ritual invariável: chegava da escola, almoçava, descansava e ia cuidar, cada qual do que lhe era designado pela matriarca: limpeza da casa, cuidado com a roupa, alimentar os animais, abastecimento do lar, ora com água ora com o combustível utilizado para cozinhar os alimentos – a lenha retirada do mato na propriedade rural da família.
As meninas se debruçavam em trabalhos mais domésticos propriamente ditos: faxina da casa, lavar louça, varrer o terreiro e o quintal da casa, colocar comida para as galinhas, lavar roupas, etc....; os meninos se encarregavam de trabalhos mais afeitos a homem — era o procedimento adotado naquela época — limpar o chiqueiro dos porcos, ajudar no corte e transporte de cana para o engenho, chiqueirar as vacas, ovelhas e as cabras, curar umbigo dos borregos e cabritos, quebrar lenha no mato da propriedade da família, levar hortaliça, banana, coco, cana, frutas, etc, para o consumo de casa e/ou doações — atitude marcante em d. Zefa —, ir buscar água na fonte para beber e para abastecer a casa em outras utilidades e necessidades.
Vale esclarecer que, para cada serventia da água esta era apanhada de uma fonte específica: fonte de beber e fonte de lavar (uso comum e outras utilidades), assim eram conhecidas as fontes públicas do lugar. É sabido, no entanto, que cada proprietário de terreno de brejo tinha sua fonte particular e, às vezes, fazia uso da água desta para beber, principalmente se a água fosse, ao seu avaliar, melhor que a da fonte pública.
Quase sempre a matriarca, d. Zefa, passava a determinação aos aguadeiros domésticos para que fosse levada uma carga d’água na casa paroquial:
— barris cheios, viu seu moço, não vá me levar meiota pra lá não. Se você não se comportar direitinho eu vou ficar sabendo, ou hoje ou amanhã. Não esqueça que todo domingo nós vamos todos à missa, e, ou o padre ou o sacristão vai me dar notícias se você se comportou bem ou não.
Em que pese a Paróquia contar com um cavalo baio para tais serviços, sempre cuidado e tangido pelo sacristão Rumão Caroba, ou mesmo por algum fiel voluntário quando aquele tivesse de executar outras atividades designadas pelo vigário, d. Zefa não levava em conta; tinha como uma espécie de compromisso esta doação de água para uso do vigário — era como se fosse um dízimo fora dos padrões.
Como era normal em qualquer família rural, cada um da filharada de seu Zeca tinha uma certa afinidade com determinado animal de trabalho do plantel da roça.
Escolástico tinha predileção para trabalhar com o jegue nominado Faro Fino. Havia uma verdadeira cumplicidade entre eles; os comandos do menino eram conhecidos e obedecidos pelo animal de tração às vezes com um simples assovio ou um levantar de braços.

Quando chegava na roça para pegar Faro Fino, bastava o assovio característico de Escolástico para o jegue ir de encontro ao seu parceiro de trabalho. Escolástico botava-lhe o cabresto, alimentava-o com um punhado de milho debulhado num aió de crauá, limpava bem o lombo do jegue para retirada de impurezas a fim de evitar pisar o animal — causar contusões a ponto de tornar-se feridas —, punha a cangalha, arrochava a chincha, montava e seguia até o destino da lida do dia.
A depender da tarefa — se abastecimento de lenha ou d’água — punha os ganchos apropriados para cada ofício: arrumar os paus-de-lenha ou dependurar os quatro barris de madeira, estes com capacidade média entre dezoito e vinte litros cada.
Se abastecimento de lenha ia pro mato, quebrava a lenha, arrumava direitinho nos ganchos de madeira até a altura que alcançasse e o jegue suportasse; se d’água enganchava os barris, dois de cada lado, e rumava para a fonte do município com a finalidade de providenciar o abastecimento da moradia e doação ao vigário.

Num desses abastecimentos doados à casa do vigário ocorreu um episódio pouco esperado e de muito incômodo para a família de d. Zefa e seu Zeca.
Aguadeiro designado daquele dia, Escolástico palmeara o barril d’um fôlego só, jogara no ombro e, ao subir as escadas, para descarregar na caixa d’água, tivera os fundos do seu calção, fabricados com tecido de sacos de farinha do reino (farinha de trigo), descosturados — craaaash — , por conta do esforço empregado!
Lá de baixo, o sacristão, entre feliz e assustado, fizera comentário pecaminoso sobre o que estava vendo, gritando a todos pulmões:
— viuxe Maria, valei-me Senhor São Bento, acode aqui seu padre, esse minino já tem cabelo no pé do milho. E num é pouco não viu!, tá parecendo um móio de coentro arrudiando uma traíra de riacho.
O padre, assustado com o chamamento penitencioso do sacristão, acorrera aos fundos da casa para se acercar do que estava acontecendo de tão grave. Não deixara de esboçar aquele riso sarcástico, porém respeitoso, ao seu sentir.
Escolástico, escabreado e com as faces rubras, não gostara nem um pouco da gritaria do sacristão e ainda mais de ele ter chamado o vigário daquela forma, para ver seu saco pendurado, tampouco do riso sarcástico do padre, por conta daquele acidente de percurso.
Como não era de levar desaforo pra casa, tascou uma resposta ríspida, dirigida ao sacristão, acompanhada de xingamentos usuais da época:
— vai-te pra casa do levunco, seu fio duma égua manca. Você fica daí de baixo, sem fazer nada, olhando a chibata dos outros e ainda chama o padre para fazer vergonha a quem tá trabalhando, seu falso ao corpo do cabrunco.
O aguadeiro estava no segundo barril da descarga, e, por conta desse entrevero, nem o padre nem ninguém mais convencera-o a terminar de derramar o restante da carga d’água na caixa superior da residência paroquial. Foi-se embora praguejando; agora não só o sacristão, mas também o padre que ficara rindo do acontecido.
Dirigir xingamentos a alguém, naquele tempo principalmente, era um desrespeito dos maiores, se não fosse um pecado dos mais reprimidos, ainda mais na presença de um padre.
Isso não ficou nada bom pra Escolástico.
O vigário só o perdoaria em confissão e, ainda assim, na Santa Missão de 31 de dezembro, festa da padroeira do lugar, Nossa Senhora do Cuidado. O xingador havia de carregar aquele pecado nas costas, por no mínimo uns quatro a cinco meses, até receber o perdão sob confissão e cumprimento de penitência arbitrada pelo confessor.
No domingo o vigário da paróquia, padre Elesbão procurara d. Zefa, após a missa, para agradecer a doação do líquido da vida, e, mais do que nunca, queixar-se da atitude pecaminosa e desrespeitosa do seu menino, o aguadeiro que levara água à casa paroquial no início da semana — ele, o próprio, Escolástico:
— bom dia minha paroquiana bondosa, como vai a senhora? Seu esposo e seus meninos estão bem? Hoje não vi todos na igreja. O que houve? Alguém doente? Viajou?.
Certamente Escolástico dera um “zignal” em d. Zefa, entrando pela porta principal e saindo pela lateral, afinal estava com medo de que o vigário falasse na igreja, pra todo mundo ouvir — até os Santos e Santas — que o calção dele descosturara e o sacristão Rumão Caroba vira suas partes fracas.
Era chegado o momento da Santa Missão de Nossa Senhora do Cuidado e o lugar fervilhava de alegria e sonhos.
Para ajudar o vigário, viera da Cidade da Bahia um monge beneditino, Frei Apolônio di Loungi, a quem seria encarregado o ofício de tomar a confissão dos adultos, dos encarcerados e dos enfermos, ficando a cargo do padre Elesbão tomar a confissão dos menores e crianças.
— Escolástico meu filho, se apronte pra ir pra igreja que hoje é dia de confissão e você precisa de redimir dos pecados, principalmente daqueles xingamentos na presença do vigário, ordenou d. Zefa.
— Não mãe, a padre Elesbão não; a ele não, mãe. Logo a ele, que se juntou com o sacristão pra mangar do meu calção rasgado, dos meus quimbas e da minha chibata?!
Ordem de mãe é pra ser cumprida e Escolástico não havia de desobedecer; seria um pecado muito maior do que todos os que já trazia nas costas.
Resmungou pra lá, resmungou pra cá, mas entrou na fila da confissão, afinal o rosário de pecados que carregava era escabroso e não estava muito inclinado a contar tudo ao vigário do lugar.
Toda vez que chegava uma criança atrasada, ele, gentil e estrategicamente, lhe cedia o lugar e ia pro final da fila............ Imagens: acervo do artista plástico Eduardo Lima @eduardolimaart
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